sexta-feira, 14 de maio de 2010

Bastamos

Eu falo, tu falas, ele não fala. Quero desse jeito - disse. Não há necessidade de uma terceira pessoa em nossa relação.

Paulo Pimenta

Meu garoto

-“Você não pode ser o menininho da mamãe e do papai ao mesmo tempo.” Era o que me dizia uma voz – perturbadora até – desde o dia em que me entendi por gente. Que coisa mais difícil, não? Uma escolha bastante arriscada. Por conta das circunstâncias, acho que me tornei um menino do papai. Meus pais já eram velhos quando me “fizeram”. Trabalhavam bastante, porém, papai estava perto de se aposentar por conta de algumas doenças. Uma das coisas que me fizeram (ou me obrigaram, não sei) a ser dele, foi o fato de, após 14 anos, nascer um filho. Papai era muito sentimento, muita paixão, pensava com o coração sempre. Parecia não ter inimigos e fazia de tudo para agradar os outros. Não havia uma festa na qual não marcasse a presença; podia ter certeza de que não estava fazendo a coisa certa, mas, se naquele momento era a sua vontade, fazia da mesma maneira. Mamãe não era assim. Era analítica, racional, objetiva e tímida. Não gostava de festas ou viagens. Preferia interior à praia; comida caseira a restaurantes sofisticados. Segura de si, aprendera com a vida a ser responsável e a lidar com as adversidades que viessem a surgir.
Papai aposentou-se. Mamãe trabalhava o dia todo. Minha irmã mais velha trabalhava de dia e estudava à noite. Meu irmão estudava de dia e trabalhava à noite. Eu era o único companheiro de papai e ele, lógico, o meu. Jogos de futebol, pipas, shoppings, planejamentos sem pé nem cabeça, eram nossas atividades rotineiras. Papai era teimoso, muito teimoso. Nunca largou a cervejinha diária tampouco aquela droga do cigarro. O que isso lhe rendeu? Além de cateterismo e angioplastia, três pontes-safenas e uma mamária.
E assim foi nossa saga juntos. Durou bastante tempo. Minha mãe, então, resolveu aposentar-se também. Teria agora os dois em casa. Menino do papai ou menino da mamãe? Ai! Quanta dúvida.
E foi na tarde de uma terça feira modorrenta, chuvosa, cinzenta, e fria que mamãe, em meio a lágrimas e incertezas, disse-me: “Vem cá, a partir de hoje você será o homenzinho da mamãe.” Papai havia nos deixado. “Deus o quer junto dele”, me diziam os amigos da família, achando que me confortariam. Tolos. Como assim, eu, um garoto de 11 anos, seria agora o homem da minha mãe, o homem da casa? Quanta responsabilidade! Não estava pronto pra isso. Papai, naquela hora, deveria estar me olhando do céu, com uma latinha na mão, um cigarro noutra, vendo seu Botafogo ganhar e falando sobre mim pro vocô. Eu queria continuar sendo o menininho, queria ser paparicado, queria descer pra jogar bola com meus vizinhos tranquilo, queria tanta coisa, queria ao menos alguém pra que eu pudesse me espelhar.
Virei o menininho da mamãe. Um menininho quase homenzinho, admito. Não tinha mais tempo para tantas baboseiras. Quando se perde um pai, as pessoas ficam em cima de você por algum tempo, acham que você volta a ser um bebê, mas quando se cansam, babau, vão embora e nem olham pra trás.
Ser um menininho da mamãe me privou de muitas coisas e abriu portas pra muitas outras.
Mamãe não gostava que eu andasse de bicicleta fora do condomínio, mamãe não gostava que eu saísse à noite. Sabe aquele medo que só as mães têm? Pois é. É disso que eu estou falando.
Passei a ir a pé para a escola, a viajar sozinho, a comer sozinho, a viver mais por mim mesmo. Mamãe tinha muita coisa pra se preocupar. Mas uma coisa não posso deixar de dizer: o amor que esta mulher me deu supriu todas as minhas carências e dúvidas, foi capaz até de fazer nascer dentro de mim novos sonhos, novos projetos – assim como eu fazia com papai – sabe?
Já fui o menininho dos amigos, mas hoje, aos dezoito anos, vejo que o menininho da mamãe está virando um menininho do mundo. Estou quase adestrado para voar sozinho, estou quase pronto pra deixar que aquele menininho fique preso e estático – como um Peter Pan – no coração de mamãe. Tenho medo do que me espera lá na frente. Mas sei que, assim como a tive na perda de papai e nas tantas outras vezes que caí e ela – não eu – me levantou, ela me fará sonhar e lutar para que minha felicidade reine sempre, por todos os dias da minha vida.

Paulo Pimenta